Prisão Política
As editoras Elivulu (Angola) e Perfil Criativo (Portugal) no seguimento da publicação de várias edições dedicadas à questão da memória colectiva de Angola, trazem este ano (2021) o diário de cárcere de um jovem preso político angolano, Sedrick de Carvalho, do processo conhecido como 15+2, que nos revela os bastidores da sua detenção, prisão e julgamento.
O relato começa a 20 de Junho de 2015, na Vila Alice (Luanda) quando um grupo de jovens se encontrou no ILULA para realizar uma leitura colectiva da obra “Da Ditadura à Democracia”, de Gene Sharp. Estes jovens foram violentamente presos por uma força especial de intervenção rápida do Serviço de Investigação Criminal (SIC), e mais tarde, assistiram a um bizarro julgamento no qual foram acusados de terrorismo. Sofreram uma prisão prolongada até 29 de Junho de 2016, data em que foram libertados por ordem do Tribunal Supremo.
Autor: Sedrick de Carvalho
Editora: Elivulu Editora | Perfil Criativo - Edições
Ano de publicação: Junho de 2021, 1.ª edição
Edição de Angola - ISBN: 978-989-54615-6-1
Edição de Portugal - ISBN: 978-989-53079-3-7
Língua: Português
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Introdução
Por Sedrick de Carvalho
No dia 3 de Março de 2016, iniciei este relato num antigo e pequeno tablet. Digo isto para destacar o facto de não ter, sequer, um computador em casa, porque o nosso material informático permanecia com o Serviço de Investigação Criminal (SIC) e a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Esforçava-me para levar a cabo a decisão de começar a escrever o relato que agora o leitor tem em mãos. Chamo-lhe «relato» porque é, simplesmente, isso – um relato – e nada mais. Também destaco a data, para que facilmente se perceba o estado emocional em que tudo ocorreu – desde a nossa prisão, a 20 de Junho de 2015.
Depois de ter lido no site da Voz da América, no dia 1 de Março, terça-feira, a notícia de que três companheiros do processo 15+2 – Arante Kivuvu, Albano Bingo Bingo e Fernando Tomás «Nicolas» – não tinham o que comer e, claro, passavam fome, fiquei bastante angustiado.
As dificuldades de todos nós, que nos encontrávamos em prisão domiciliária, eram generalizadas. Soube-as pelas conversas com os companheiros, ainda na cela do tribunal, nos dias em que lá aguardávamos pelo arranque das sessões. Mas, até ao ponto de uns terem ficado dias sem se poderem alimentar, involuntariamente, era demasiado aterrorizante.
Ainda a 1 de Março, dezenas de angolanos morreram no Lubango, província da Huíla, vítimas de inundações causadas pelas chuvas. Será sempre difícil apontar um número concreto, mas oficialmente – embora sem confiança, porque quem os fornece também não é confiável – divulgou-se a morte de 25 pessoas. Fontes locais disseram-me que as idades das vítimas variavam entre os 2 e os 72 anos.
Na manhã seguinte, dia 2, o então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, esteve presente no enterro de Lúcio Lara – uma das figuras centrais do 27 de Maio –, falecido no dia 27 de Fevereiro. Tchiweka, seu nome de guerra, é incontornavelmente um homem histórico no seio do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e do País, pelas melhores e piores razões, sobretudo pela negativa (piores).
Destaco a presença de José Eduardo dos Santos no funeral de um militante do partido do qual foi presidente durante 39 anos, considerado «pilar fundamental» do MPLA, quando apenas emitiu, através da Casa Civil, uma nota de condolências aos familiares de mais de duas dezenas de angolanos mortos e muitos desaparecidos no Lubango.
Estava eu, exactamente, a anotar essa insensibilidade quando passou no noticiário central da Televisão Pública de Angola (TPA) – que sintonizo poucas vezes e sempre a contragosto – a informação do arranque de mais um congresso ordinário da Organização da Mulher Angolana (OMA), ala feminina do partido no poder. E lá também estava o presidente do MPLA. Destilava prazer ao assistir àquele culto de adoração a si mesmo. À tarde, foram enterrados os angolanos vítimas da enxurrada. Nenhum altíssimo ou alto membro do Governo esteve presente no acto. Tanto desprezo pelo povo!
Foi neste ambiente desolador que principiei este relato. Uma simples mas necessária descrição do que passei enquanto estive preso – da detenção à esquadra; das celas de isolamento à prisão de São Paulo; do início do julgamento à prisão domiciliária; da condenação ao regresso às masmorras; e, por fim, a liberdade.
Faço questão de frisar que é uma «necessária descrição» porque é realmente indispensável narrar as atrocidades de que fomos vítimas, nós, os 17, inicialmente 15 presos políticos, por parte de instituições e individualidades que oficial, profissional e humanamente deveriam defender a legalidade, bem como promover os direitos humanos e o bem-estar de todos os angolanos.
Um dos objectivos que as ditaduras pretendem alcançar com os isolamentos em prisão é estancar as capacidades cognitivas dos presos, para que se reduzam a meras «marionetas com rosto de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov». Uma táctica de tortura usada por Adolf Hitler nos campos de concentração e extermínio e tão bem explicada por Hannah Arendt no livro As origens do totalitarismo. Mas, a individualidade, essa parte da pessoa humana, dizia Arendt e confirmam os especialistas do fórum psicológico e psiquiátrico, é a mais difícil de destruir. E não conseguiram destruir a minha.
Estava isolado, mas não sozinho. Nas celas solitárias por onde passei, nunca estive solitário, pois conversava muito comigo mesmo. Parece princípio de loucura? Penso que não. E se for, então todos somos loucos.
Embora tenha conhecimentos técnicos de Direito, precisamente em matéria penal, optei por evitar fazer qualquer enquadramento jurídico de várias acções e omissões que são, indubitavelmente, contrárias às leis angolanas e aos muitos tratados internacionais ratificados. Isso não pressupõe que não se faça uma abordagem mais pormenorizada de todo o processo, do ponto de vista jurídico. Contudo, esta perspectiva – as violações contínuas e sistemáticas, uma pornografia governamental e judicial ao bel-prazer das leis – será, penso, amplamente esmiuçada em livros da autoria dos advogados que, ao longo do processo, nos defenderam.
Importa referir que este relato se complementa com os escritos dos meus companheiros, visto ser quase impossível reter todos os factos ocorridos ao longo do calvário pelo qual passámos.
Como consequência da condenação, apenas voltei a escrevê-lo no dia 4 de Agosto de 2016. Tinha parado no subtítulo O comissário da PN, no primeiro capítulo. Continuava sem o material apreendido, porém escrevia num computador oferecido por Alexandre Solombe, então presidente do Instituto da Comunicação para África Austral – MISA Angola.
E só no final de 2019 concluí este livro, cumprindo a promessa que fiz a mim mesmo.